Peter Zumthor . Pensar a Arquitectura

Estes não são mais do que passagens do livro, pensar a arquitectura publicado em português pela editora Gustavo Gili.

Tinha isto aqui arrumado pelo sótão do computador, a ver se futuramente publico outros...


Uma intuição das coisas


À procura da arquitectura perdida


Quando estou a projectar encontro-me frequentemente imerso em memórias antigas e meio esquecidas, e questiono-me: qual foi precisamente a natureza desta situação arquitectónica, o que significava na altura para mim e ao que é que poderei recorrer para ressuscitar esta atmosfera rica que parece saturada da presença natural das coisas, onde tudo tem o seu lugar e toma a sua forma?


Do material que é feito


Trabalho de Joseph Beuys, e grupo arte povera

O que me impressiona nestas obras de arte é o emprego preciso e sensual do material. No meu trabalho tento empregar os materiais de uma maneira semelhante.

Penso que estes, no contexto de um objecto arquitectónico, podem assumir qualidades poéticas. Para tal efeito é necessário criar no próprio objecto uma coerência de forma e sentido; uma vez que os materiais em si não são poéticos. O sentido nasce quando se consegue criar no objecto arquitectónico significados específicos de certos materiais que só neste singular objecto se podem sentir desta maneira.

Quando trabalhamos com este objectivo, temos sempre que voltar a perguntar, o que é que um determinado material pode significar num determinado contexto arquitectónico. Boas respostas a estar perguntas podem tornar claro, sob uma nova luz, o modo como estes materiais costumam ser utilizados e as suas próprias características sensoriais e significativas. Se o conseguirmos, os materiais na arquitectura poderão transmitir som e brilho.


O trabalho nas coisas


A construção ( inspirado em Johann Sebastian Bach) é a arte de formar um todo com sentido a partir de muitas partes. O verdadeiro núcleo de qualquer tarefa arquitectónica encontra-se, no meu entender, no acto de construir. É aqui, onde os materiais concretos são reunidos e erigidos, que a arquitectura imaginada se torna parte do mundo real.


Para o silêncio do sono


Penso que a arquitectura contemporânea, no fundo, deveria dispor de um ponto de partida igualmente radical como o da música contemporânea. Mas a esta exigência são impostos limites. Se a composição de uma obra se basear em desarmonia e fragmentação, em ritmo quebrados, clustering e quebras estruturais, a obra pode de facto transmitir mensagens, mas a compreensão da mensagem apaga a curiosidade e o que resta é a pergunta quanto à utilidade do objecto arquitectónico para a vida prática.

A arquitectura tem o seu espaço de existência. Encontra-se numa ligação física especial com a vida. No meu ponto de vista, inicialmente não é mensagem nem sinal, mas invólucro e cenário de vida, um recipiente sensível para o ritmo dos passos no chão, para a concentração do trabalho, para o silêncio do sono.


Fendas no objecto selado


As casas são configurações artificiais. Consistem em pormenores que têm de estar ligados entre si. A qualidade destas ligações determina fortemente a qualidade do objecto final.

(Assim) A percepção do todo não é desviada por pormenores secundários. Cada contacto, cada ligação, cada união está lá, para servir à ideia de um todo e para reforçar a presença serena da obra.

A arquitectura é desafiada a formar um todo de inumeráveis peças singulares que se diferenciam em forma, função, no material e no tamanho. Para os cantos e juntas, onde as áreas dos objecto se cruzam e os diferentes materiais se encontram, é preciso procurar construções e formas convenientes. São estes detalhes que determinam as pequenas nuances dentro das grandes proporções do corpo construtivo. As particularidades desenham o ritmo formal, a escalização refinada do edifício.

Os pormenores quando são bem resolvidos, não são decoração. Não desviam a atenção, não entretêm, mas sim levam-nos à compreensão do todo de cuja natureza fazem essencialmente parte.


Para além dos sinais


“ Tudo é possível”, ouve-se no mundo dos que fazem. “Mainstreet is almost all right”, diz Robert Venturi. “ Já nada se pode fazer”, dizem aqueles que sofrem com a inospitalidade dos nossos tempos. Estas afirmações representam opiniões contraditórias, se não mesmo factos contraditórios. Parece que nos estamos a habituar a viver com discrepâncias, e também podemos nomear algumas razões para este facto: as tradições dissolvem-se, já não existem identidades culturais fechadas. A economia e a política desenvolvem uma dinâmica que ninguém parece realmente perceber ou controlar. Tudo se mistura com tudo, e a comunicação massificada evoca um mundo artificial de sinais. Arbitrariedade é a palavra de ordem.

Talvez se possa descrever a vida pós-moderna da seguinte forma: Tudo o que vai para além dos nossos dados autobiográficos parece vago, difuso e, de qualquer modo, irreal. O mundo está cheio de sinais e informações que representam coisas que ninguém percebe inteiramente, porque também estas, por seu lado, se revelam afinal como sinais para outras coisas. O que é verdadeiro continua escondido. Ninguém jamais o verá.

Quando observamos objectos ou obras que parecem repousar dentro de si próprios, a nossa percepção torna-se, de uma maneira especial, calma e obtusa. O objecto, com que nos deparamos, não nos impõe nenhuma mensagem, simplesmente está lá. A nossa percepção torna-se então silenciosa, imparcial e não possessiva. Encontra-se além dos sinais e dos símbolos. Está aberta e vazia. É como se visse alguma coisa que não se deixa atrair para o centro da consciência. Agora, neste vácuo da percepção, pode surgir uma memória no observador que parece ter origem na profundidade do tempo. Ver o objecto significa agora também adivinhar o mundo na sua totalidade, uma vez que não há nada que não se possa perceber.


Paisagens completadas


Cada nova obra intervém numa certa situação histórica. Para a qualidade desta intervenção é crucial que se consiga equipar o novo com características que entrem numa relação de tensão significativa com o existente. Para o novo poder encontrar o seu lugar, precisa primeiro de nos estimular para ver o existente de uma nova maneira. Lança-se uma pedra na água. A areia agita-se e volta a assentar. O distúrbio foi necessário. A pedra encontrou o seu lugar. Mas o lago já não é o mesmo.

Penso que os edifícios que, a pouco e pouco, são aceites pelo seu espaço envolvente devem possuir a capacidade de atrair, de diversas formas, a emoção e o raciocínio. O nosso sentimento e compreensão estão, no entanto, enraizados no passado. É por isso que o significado que criamos com o edifício deve respeitar a memória.


Verdades inesperadas


Uma obra pode dispor de qualidades estéticas, quando as suas diversas formas e conteúdos se fundem num ambiente base forte que nos consegue tocar. Esta arte nada tem a ver com configurações interessantes ou com a originalidade. Trata de compreensão, bom senso e, sobretudo, de verdade. E se calhar a poesia é a verdade inesperada.

A sua presença requer o silêncio. Conferir uma forma a esta expectativa silenciosa é a tarefa artística da arquitectura.


Cobiça


Para construir uma obra de forma clara e lógica é necessário projectar de acordo com critérios racionais e objectivos. Se permitir que o decurso do processo de projectar seja repetidamente baralhado por ideias subjectivas e não reflectidas, admito a importância de sentimentos pessoas no acto de projectar.

Quando os arquitectos falam sobre as suas obras, muitas vezes o que dizem não coincide exactamente com o que estas nos contam. Provavelmente está relacionado com o facto de os arquitectos falarem mais sobre os aspectos pensados dos seus trabalhos e darem pouco a conhecer das paixões secretas que lhes conferem realmente alma.

O processo de projectar baseia-se numa cooperação contínua entre o sentimento e o intelecto. As emoções, preferências, ânsias e cobiças que surgem e tomam forma devem ser examinadas com um raciocínio crítico. É depois o sentimento que nos transmite se os pensamentos abstractos são coerentes.

Projectar significa, em grande parte, compreender e ordenar. Mas a verdadeira substância essencial da arquitectura é originada, pela emoção e inspiração. Os momentos valiosos da inspiração aparecem com o trabalho paciente.


Escrito no espaço


A Arquitectura conhece duas possibilidades fundamentais de formação do espaço: o corpo fechado, o corpo fechado, que isola o espaço no seu interior, e o corpo aberto que abraça uma parte do espaço ligado ao contínuo infinito. A expansão do espaço torna-se visível no posicionamento dos corpos alinhados em profundidade ou ordenados como placas ou barras.

Não exijo saber o que o espaço realmente significa. Quanto mais penso sobre a sua natureza, mais misterioso me parece. No entanto, estou seguro que, quando nós como arquitectos reflectimos sobre o espaço, é apenas com uma pequena desta infinidade que rodeia a terra que nos ocupamos. Mas cada obra estabelece um lugar nesta infinidade.

Edifícios que nos impressionam transmitem-nos sempre uma sensação forte do seu espaço. Circundam de uma maneira especial este vazio misterioso a que chamamos espaço e fazem-no oscilar.


Raciocínio prático


O acto de criação de uma obra arquitectónica vai para além de sabedoria histórica e manual. No seu centro, encontra-se a confrontação com as questões do seu tempo. No seu momento de criação, a arquitectura está ligada de uma maneira especial ao presente. Reflecte o espiríto dos seus inventores e dá as suas próprias respostas às perguntas actuais, isto é através da sua utilidade e aparência, da sua relação com outros arquitectos e da relação com o lugar.

Observo nitidamente o mundo construído e tento recolher nas minhas obras o que me parece valioso, corrigir o que incomoda e recriar o que nos falta.


Passos deixados para trás


Forma e construção, aparência e função já não podem ser separadas. Pertencem um ao outro e formam um todo.


Resistência


Penso que a arquitectura, hoje em dia, se deve recordar das suas tarefas e possibilidades genuínas. A arquitectura não é nenhum veículo ou símbolo de coisas que não fazem parte da sua natureza. Numa sociedade que celebra o insignificante, a arquitectura pode opor resistência, contrariar o desgaste de formas e significados e falar da sua própria linguagem.

A linguagem da arquitectura não é, a meu ver, nenhuma questão de estilo arquitectónico. Cada edifício é construído com um determinado objectivo, num determinado lugar e para uma determinada sociedade. Às questões que resultam destes factos simples tento responder com as minhas obras do modo mais preciso e crítico que consigo. Num tempo em que a cultura da criação se encontra estagnada e a beleza é arbitrária, aposto no efeito elucidativo deste trabalho.


O núcleo duro da Beleza


Peter Handke diz que a beleza se encontra nas coisas naturais, originais que não foram ocupadas por imagens ou mensagens, e que ficava frustrado quando não podia descobrir o sentido das coisas por ele próprio.

William Carlos Williams considera que não existem ideias para além das coisas e que a sua arte (poesia) gira em torno de dirigir a percepção sensitiva ao mundo real para com ele se apresentar.

Penso por isso não querer provocar emoções com as obras, mas sim permitir emoções. E manter-se fiel à natureza das coisas a criar, e confiar que a obra, desde que seja inventada com a adequada precisão para o lugar e função, desenvolva a sua própria força sem necessitar de nenhum acessório artístico.

O núcleo duro da beleza: Substância concentrada.

“O poeta do vago só pode ser o poeta da precisão” - Ítalo Calvino

John Cage, diz que não era um compositor que ouvia a música na sua mente e depois tentava anotá-la. O seu modo de trabalhar era diferente. Trabalhava com conceitos e estruturas e fazia-os representar, para descobrir só nesse momento como soavam.

Herzog & de Meuron consideram que nos nossos dias a arquitectura como um todo já não existe e, consequentemente, deveria ser construída de forma artificial, por assim dizer na cabeça do criador, num acto de pensamento. A arquitectura deve reflectir de uma maneira especial a sua totalidade pensada e, portanto, artificial.

(Isto leva à) suposição de que já não existe a totalidade de uma obra no sentido tradicional da construção.

Peter Handke qualifica-se como um escritor dos lugares, exige dos seus textos “que ali não aconteça nenhum acessório, mas sim uma compreensão das particularidades e o seu enlace para uma … circunstância. “

(Pretende então) criar coisas genuínas, integrais: Construir circunstâncias claras, pensar as obras como circunstâncias cujas particularidades devem ser compreendidas da maneira certa, e colocadas numa relação objectiva umas com as outras.

… Quer com isto dizer, que as suas obras sejam percebidas com uma fidelidade ao lugar que descrevem e não como uma coloração ou um colorido. Estas palavras ajudam-me a conformar-me com a indisposição que sinto muitas vezes quanto olho para a arquitectura mais recente. Deparo-me sempre com obras que com esforço e vontade foram moldadas à forma espacial e fico incomodado. Embora o arquitecto, que a fez, não esteja presente, fala ininterruptamente comigo a partir de cada pormenor do edifício e diz-me sempre o mesmo e tão rapidamente que já não me interessa.

Uma boa arquitectura deve hospedar o homem, deixá-lo presenciar e habitar, e não tentar persuadir.

Interrogo-me muitas vezes porquê se tenta tão pouco o evidente, o difícil? Porque é que os jovens arquitectos demonstram tão pouca confiança nas coisas mais intrínsecas que constituem a arquitectura: o material, a construção, a terra, o céu.

È apenas entre a realidade das coisas e a imaginação que acende a faísca da obra de arte.

Onde encontro a realidade à qual devo dirigir a minha imaginação, quando tento projectar um edifício para um determinado lugar e para um determinado objectivo?

Uma chave para a resposta, penso eu, encontra-se nas palavras lugar e objectivo.

A realidade da arquitectura é o seu concreto, o que se tornou forma, massa e espaço, o seu corpo. Não existe nenhuma ideia, excepto nas coisas.


Das paixões pelas coisas


Quando me concentro num determinado lugar para o qual devo elaborar um projecto, tento explorá-lo, perceber a sua fugira, a sua história e a suas qualidades sensoriais. É então neste processo do olhar preciso, que começam lentamente a penetrar imagens de outros lugares. Imagens de lugares que conheço e que em tempos me impressionaram. Imagens de lugares vulgares e especiais, cuja figura interiorizo como um arquétipo de determinados ambientes e qualidades. Imagens de lugares ou situações arquitectónicas oriundas do mundo das artes plásticas, do cinema, da literatura, do teatro.

Deste modo mergulho no lugar do projecto, sinto-o e, ao mesmo tempo, olho para fora, para o mundo dos meus outros lugares.

Das obras que constroem uma presença especial no seu lugar tenho muitas vezes a impressão que dispõem de uma tensão interior que aponta para lá do lugar em si. Fundamentam o seu espaço concreto enquanto revelam o mundo. O que vem do mundo entrou neles numa ligação com o local.

Se um projecto se nutre somente do existente e da tradição, se repete apenas o que o lugar lhe oferece, falta-me o debate com o mundo, falta-me a irradiação do contemporâneo. Se uma peça de arquitectura apenas conta o mundano e o visionário, sem fazer oscilar com ele o seu lugar concreto, sinto a falta da ancoragem sensorial da obra no seu lugar, do peso específico do local.


Fragmentos


Este edifício é interessante por razões conceptuais e teóricas, construtivas e outras, mas o problema é que não tem alma.



2 comments:

  1. PARABÉNS, TEM AQUI UM BOM BLOG!



    Melita Alves

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  2. Obrigado, vai participando...eu vou ver quando arranjo tempo para partilhar mais textos. Se quiseres alguma coisa especial, podes sempre mandar mail, quem sabe se não terei alguma coisa.

    Beijo.

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